Jussara Lucena, escritora

Textos

A aquarela

Na madrugada ouvi o barulho de pedras sobre o telhado. Puxei a cortina e olhei pela janela. Não havia sinal de formação de chuva ou de granizo. A lua cheia estava se preparando para se pôr no horizonte. Não consegui ver nada que explicasse o que acontecia. Abri a vidraça e os sons cessaram. Quando me virei, as pedras tocaram o vidro da janela. Voltei a observar e percebi que na casa ao lado uma pessoa parecia espiar por detrás da cortina. Não se incomodou com a minha presença, mas também não poderia ser ela a atirar pedras. Eu não conhecia os novos vizinhos. A outra família havia mudado a quase um ano e os movimentos na casa só voltaram nos últimos dias.

Resolvi descer para o banheiro. Quando apertei a tecla do interruptor, num primeiro momento a lâmpada ascendeu e na sequência a casa ficou sem energia elétrica. Sem alternativa, comecei a descer as escadas no escuro. Havia uma luz tênue que entrava pela claraboia do telhado. Percebi um vulto em movimento. Se deslocou com incrível velocidade e pareceu passar pela folha da porta de correr que havia entre a sala de estar e a cozinha.

Desci o mais rápido que pude e abri a porta. Avistei, sentada de costas à mesa, uma senhora de cabelos grisalhos, lisos, de onde pendia uma trança fina, na lateral da cabeça. Não era ninguém que eu conhecesse. Estiquei o braço para tocar o seu ombro. Ela virou-se e sorriu. Apesar da escuridão, pude perceber algumas das rugas em seu rosto e os traços de uma mulher indígena.

Ouvi passos atrás de mim. Virei-me no exato momento em que minha mãe apertava o interruptor. A luz voltou. Minha mãe, surpresa, me perguntou o que havia acontecido. Ela riu, da minha resposta, recomendou que eu voltasse a deitar, tratava-se de um sonho. Sem argumentos, depois de beijar minha mãe e fui até o banheiro.

Quando eu lavava minhas mãos, percebi, pelo reflexo do espelho e pela porta entreaberta, um leve movimento da cortina. A torneira fechou-se sozinha. Senti o meu corpo todo arrepiar. Pensei que pudesse ser a minha mãe se certificando de que eu voltaria para cama e que a torneira estivesse com defeito. Acendi as luzes da sala, não havia nada. A torneira voltou a funcionar. Voltei para fecha-la,

Um gole de água gelada poderia me fazer bem. Retornei à cozinha. Sobre a mesa havia uma pena, como as que adornavam a roupa da velha senhora que eu avistara há pouco. Levei a pena comigo e a guardei entre as páginas do livro que estavas sobre a minha cabeceira. Me esforcei para continuar a dormir, sem sucesso, O fenômeno não voltou a se repetir na madrugada. Na janela da casa vizinha não havia mais ninguém.

O meu dia foi difícil. Não consegui me concentrar no trabalho, as lembranças da velha senhora e dos ruídos no telhado não saiam da minha cabeça. Contei o que havia acontecido para um amigo. Ele sugeriu que a minha casa fosse assombrada. Só que eu morava nela desde que nasci e nunca houve nada parecido. A senhora da limpeza que estava por perto me perguntou se havia algum adolescente na casa. Respondi que não, pois sou o filho mais novo e ainda não tenho sobrinhos. Ela afirmou que aquilo era coisa de gente nova, com a energias a flor da pele.

À noite, o sono não vinha. Resolvi ler um pouco. Apanhei o livro. Quando o abri, a pena que eu guardara começou a flutuar pelo quarto. Levantei para tentar apanha-la, faltou-me o chão. A casa pareceu toda estremecer. Corri para fora. Tudo cessou. Fechei os olhos por alguns instantes, até que o muro atrás de mim começou a ruir e parte dele foi ao chão. Quando olhei pela abertura formada, na mesma janela da casa vizinha havia uma forte concentração de luz.

Fui até lá, tentei espiar, porém o forro da cortina e o clarão não me permitiam ver nada. Fui até a porta da frente e comecei a bater. Um senhor assustado veio atender à porta. Expliquei o que acontecia e ele me disse que era impossível. Falei da janela, da pessoa por trás da cortina, da luz que se formou. Ele pediu que eu me acalmasse. Depois, me disse que morava sozinho na casa e garantiu que não olhara pela janela na madrugada. Pacientemente me pediu para que eu entrasse e fomos juntos até o quarto onde ocorrera o fenômeno.

O quarto possuía apenas uma cama, uma escrivaninha, um pequeno armário e uma prateleira com alguns livros. Tudo perfeitamente arrumado. Olhando com mais atenção, percebi uma pintura, uma aquarela, retratando uma jovem adolescente de origem indígena. Preso no cabelo dela uma pena, idêntica àquela que encontrei sobre a mesa da nossa cozinha. Perguntei se era alguém conhecido. O senhor apenas comentou que comprara a aquarela num bazar beneficente.

Fiquei paralisado por alguns instantes diante da imagem. Os olhos da menina pareciam me fitar. O senhor percebendo o meu aparente interesse me ofereceu a pintura. Aceitei, levei-a e pendurei na parede do meu quarto, sobre a escrivaninha. Vencido pelo cansaço, dormi.

Acordei com alguém sentado ao meu lado. Levantei-me rapidamente. A jovem me pegou pela mão e com gestos pediu que eu a seguisse. O quadro na parede agora parecia um portal de luz, que por alguns instantes me cegou. A luminosidade foi diminuindo aos poucos, quando passou, me vi em meio a uma floresta. Uma espécie de ritual de sacrifício acontecia. Homens com o corpo pintado conduziam uma jovem de mão atadas até uma cabana. Esperei por alguns instantes, rastejei por trás da tenda, entrei. Reconheci a jovem na pintura aquarelada e a velha senhora que me visitara na noite anterior. A velha me pediu o anel que eu tinha no dedo, um presente do meu avô. Como que num passe de mágica, o anel se dividiu em dois. Ela me devolveu uma metade e colocou a outra no dedo da jovem. O corpo dela pareceu incendiar-se, numa mistura de cores e tons, até que não restou nada. Em seguida aconteceu o mesmo comigo. Eu não sentia dor alguma.

Encontrei-me em frente ao espelho do banheiro, o anel no dedo e a pena no bolso do pijama. Até hoje me pergunto quem era a garota na aquarela, que continua na parede do meu quarto.

Texto selecionado para compor a Antologia Haunting e Poltergeist organizada pela Editora Illuminare - 2017.

Adnelson Campos
13/04/2017

 

 

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